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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Da beleza

Pequeno prólogo

Montaigne, filósofo francês do século XVI, escrevia ensaios de motes do cotidiano: do amor, da guerra, da mentira, da tristeza, da educação. Escolhi esse título, Da beleza, para esse pequeno escrito, porque seus ensaios tinham títulos parecidos. É uma homenagem a ele, embora esse texto não esteja a sua altura. Algum dia postarei reflexões sobre a sua obra. Vale a pena ler!!!


Joana era feia. Sabia disso. No início teve revolta. Mal disse a Deus, a genética. Teve ódio mortal das meninas bonitas. Depois se conformou. O que é uma mulher feia? Não podia cumprir seu papel social. O homem deve ter posses. Mostrar à mulher segurança. E a mulher deve ser bonita ou próxima a isso. Havia exceções. Diziam que o mundo havia mudado. Mas não para a sua cidade no interior do Paraná. Podia ser inteligente, então. Depois soube que isso se chama sublimação; mecanismo de defesa do ego. Viu num livro de um psicólogo chamado Freud. Mas percebeu que as meninas bonitas também podiam ser inteligentes. Droga. Então, como se diferenciar? Pronto: seria legal. E foi a garota que todos gostavam de estar. Pediam conselhos. Os meninos pareciam que nem a viam como mulher. Falavam com ela como se falassem com um amigo. Tornou-se assexuada. Não tinha as pretensões das paixões que lia nos livros da escola: “Amor de perdição”, “Amor de salvação”. Infeliz Camilo Castelo Branco. Era, enfim, a feia legal. Todos gostavam dela. As meninas relatavam seus enroscos afetivos, mas nunca perguntavam dos seus. Assim, caminhou os anos. Até que no terceiro colegial, ginasial, sei lá, o governo muda tanto o sistema educacional, mas não se trata disso. O seu corpo tomou forma, emagreceu, viu seus seios medianos, redondos, pontudos, uma cintura. Estranhou. As espinhas escassearam. Tirou o aparelho dentário. Os dentes finalmente uniformes e seus lábios apareceram em todo seu esplendor, carnudos, contornos definidos. Deixou os cabelos crescer. Mas não se deu conta da transformação. O pai melhorou um pouco de vida. Comprou umas roupas legais. A mãe lhe deu um estojo de maquiagem. Aderiu ao batom, o resto era demais.
Nem percebeu que os outros tomaram conhecimento. Continuou com a sua máscara social, que de tão colada, virou uma segunda natureza. Os dias passaram. Apaixonou-se. Como pôde ciente de sua condição? Nem manifestou o afeto. Já previa o desfecho. O moço era engraçado. Adorava rir.
Um dia teve um evento na escola. Neste, estava incluído a garota e o garoto da escola. Os mais populares, os que encarnavam o “espírito” da sociedade. A votação foi de classe em classe, até que competiam com as outras classes. Bem, começou a votação na sua classe. Isso sempre era constrangedor para ela. A beleza não era um assunto que lhe agradava. E essas votações eram avaliações, comparações, colocavam as pessoas em escalas de aprovação. Acho que ninguém gostava dessa situação. Começou a votação. Aluno por aluno. Começaram pelos nomes convencionais, os já esperados. Até que seu nome foi citado! Ficou vermelha, estarrecida. Era uma piada. Mas outros também votaram nela. Ninguém riu. Não caçoavam. Parecia normal que alguns votassem nela. Não havia rumores de deboche. Não ganhou a votação, mas teve votos. Como assim??? Engasgou. Ficou profundamente envergonhada, queria fugir dali. A sua feminilidade foi exposta, percebida. Nomes escolhidos, prosseguimos: matemática, redação... A aula acabou. Desceu as escadas do velho e tradicional colégio da cidade. E, então, parou e sorriu. Foi apanhada de uma leveza. Um peso foi retirado de suas costas. Era mulher e até mesmo algumas pessoas a achavam bonita. Percebeu que não precisava corresponder a estereótipos. Que podia ser mulher, do jeito que fosse. Magra, gorda, feia, bonita. Foda-se o ideal de beleza. Agora era leve, caminhava com desenvoltura. Não mais com aquele olhar baixo. E até arrumou namorados. Transou. Dispensou alguns. Foi dispensada. Então, permitiu-se ser uma mulher, original, espontânea, sorriso na cara. Amou, estudou, trabalhou. A máscara da menina legal, engraçada, ficou num passado longínquo. E, às vezes, quando se lembrava dessa menina, dava risada, em sua kitnet descolada numa grande cidade, onde cabia a diversidade.

Um comentário:

  1. Acho que é um ensaio sobre a mulher e suas transformações, de menina feia e engraçada para uma moça bonita,original, espontânea e sorriso na cara.

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